30 junho, 2011

Páginas de ti



Hoje tenho páginas de ti. Só isso.
Págínas de palavras vazias.Descarregadas na emoção do momento, tão intenso quanto fugaz.  Num discurso fluído, palavras mortas, abortadas em demasiadas páginas que carrego comigo. Talvez na ultima tentativa para compreender. Revolvo-as, desesperada, procurando-lhes um sentido. Mas são orfãs, atiradas contra uma folha de papel, flutuam inconscientes num remoínho. Olho para elas, descrente, parecem-me ridiculas. Naquele movimento circular, repetitivo. Assim foram as mentiras. Repetições antigas, num espectáculo já visto e aplaudido. Eu tinha a acção e tu, as palavras bonitas. As que queremos acreditar contra qualquer obstáculo, as certezas confortáveis e dogmáticas gravadas num perpétuo castigo.
«Sempre te amarei e nunca te deixarei», escreveste em páginas do nosso paralelismo.
Tempo. Só com o tempo aprende-se a aceitar as perguntas que nunca terão resposta e a distinguir as promessas das fantasias.

28 junho, 2011

Abraço



«Um abraço tem esse poder: o de isolar duas pessoas do resto do mundo»

Talvez fosse esse o segredo do seu abraço. Ofuscava a vida, imunizava sons, cheiros, vultos. Cegava gentes que a raspavam despercebida. Não via nada, naquele abraço enfeitiçada.
Um abraço de chegada, era também de partida.
Apertado, quente, desgovernado, enlouquecido. Elevava-a ao paraíso. Rodopiava em círculos nos seus braços desengonçados, compridos.
Enrolava-a como a serpente envolve a sua presa, habilmente a seduz devagar. Não havia forma de escapar. Nem vontade, admitia. Aquele abraço revivia um sonho antigo, ainda que breve e esquivo, explodia felicidade à chegada, rasgava a alma na despedida.

27 junho, 2011

Partir




Naquele dia ele tomou o café da manhã, como fazia sempre. Os gestos automatizados, com os olhos pousados na torrada e o pensamento ausente. Já não era ele que estava ali à sua frente. Era apenas um corpo frio, despojado de vida, inexpressivo. Sem sangue a bombear-lhe as veias, sem o perfume de uma noite ardente de prazer. Habitava nele um silêncio profundo, como se tivesse caído num abismo enorme rochoso. Talvez por isso não foi difícil vê-lo partir. 

Os seus olhos cruzaram-se pela última vez à porta. Recorda, como se atravessasse um deserto imenso na sua memória, como antes esses olhos a invadiam insaciáveis, percorriam toda a sua pele, que arrepiada explodia de desejo. Desejo... ironicamente ele desejou, desejou «bom dia», por entre os lábios que asfixiavam uma vontade de partir. Uma vontade incontrolável, transparente e crua. 
«Porque não parte?» pensava enquanto acenava um adeus moribundo. Num ritual triste e fúnebre. «Talvez o último adeus», pensava ao vê-lo afastar-se pela janela.
Naquele dia ele não regressou. Não regressou mais. Sangue que jorrou num vermelho intenso pelo seu corpo inteiro, assim ele retomou a vida.
Ainda assim ela esperou. 
Ficou à espera. Porque tinha saudades daquele olhar antigo e penetrante, que sorria poesia.
Esperou pelas mãos que há muito não a tocavam, desapertando lentamente cada botão da sua camisa, numa respiração frenética e descontrolada. Esperou para saciar a fome de tê-lo de volta, voraz, improvisado. 
Ele já não voltou. «Partiu» convenceu-se. «Desistiu cobardemente». 
Partir sempre foi a forma mais fácil de desamar.

24 junho, 2011

Corro para ti


No meu sonho estarás sempre no pontão de madeira, com uma cerveja na mão, à minha espera. Sorris para mim, de olhos rasgados e balanças descalço o corpo desengonçado.
E eu? Eu corro para ti. Mais uma vez, corro para ti.

«Falta-te permanência, sabias?» Grito-te em vão. «És tão intenso como breve», sussurro-te ao ouvido.
Ainda assim, eu corri para ti. Corri estupidamente para ti.
Corri quilómetros de ansiedade contra a vida , corri contra a direcção do vento, contra a racionalidade do espaço e do tempo. Foi sempre assim que eu corri para ti.

Um passeio de rua, um banco de jardim, um areal. É por aí que eu vou-te encontrar sempre. Perdido, como um sem-abrigo. Contigo a vida pára ao relento, num chão de madeira gasta, despojada de regras e medo. O tempo pára, ali no meio de uma estrada, num qualquer banco de carro, só para o meu corpo encaixar-se no teu, de tal forma perfeita que doi a soltar-se. O relógio pára, para me seduzires com a voz aveludada, e quase sem dizeres nada já estou embriagada no cheiro da tua pele, envolta nos teus braços.
É sempre assim, enfeitiçada, que me perco em ti, num caminho recto sem atalhos. Apareces do nada. Vejo-te ao fundo com uma cerveja na mão, os olhos castanho mel num sorriso rasgado. E eu corro para ti, para me sentir novamente viva. Com o sangue a pulsar nas veias e o coração a sair pela boca. Não há limites para o desejo. Por isso eu corri, corri sempre estupidamente para ti.

22 junho, 2011

Frágil

Pensava que podia depositar tudo o que sentia num frasco. Vedar bem com uma tampa de rosca de metal e deixar lá fechado o que a inquietava. Pensava que era mais fácil assim, sufocar as emoções, desviar o medo, adiar decisões. Ali concentrado, tudo o que era sensível e frágil. Em lugar seguro. Escondido.
Pensava que seria fácil viver assim, esventrada de ansiedade e desilusões. Enclausurar sentimentos turvos, desconexos. Empacotar sensações.
Olha para o frasco onde encerrou um dia o seu único plano, o mais impossível e desejado. Um plano antigo, mal sucedido. A tampa está fechada, o plano foi alterado. Resta-lhe o tempo que cure as dúvidas, o frasco a liberte deste cansaço

21 junho, 2011

cabeça fora do corpo

Sinto-me, por vezes, com a cabeça fora do corpo. De uma forma ridiculamente invulgar. Como se os gestos se articulassem sem qualquer comando, estranhamente robotizados. A cabeça abstrai-se do mundo em redor, gira em torno de si própria, mas não vislumbra nada. Apenas sombras dançam perfeitas à minha volta, resta-me uma intensa neblina que paira no ar. Penso que seja cansaço e abano a cabeça inquieta, derrotada. Mas é mais do que isso, é um estado de insónia constante, persistente vigilância. É a cabeça que se recusa a funcionar. Pensar que o tempo passa depressa, apressado. Arranca cada pedaço de sonhos adiados, como um tornado. Arratasta-me sem perguntar. A cabeça voa distante, fora do corpo, atracado lá em baixo, amarrado em dever e responsabilidade. A cabeça voa para não pensar. A cabeça voa fora do corpo, infiel e distante, foge para não o enfrentar.

20 junho, 2011

Recomeço

Tudo começa como acaba. Numa mistura de dúvidas e medos. Palavras amordaçadas numa incompreensão gestual, um silêncio de diálogos mudos.
Escondem-se as mãos nos bolsos cobardemente, também elas nervosas. Receiam a sorte, o destino. Tremem envergonhadas. Sofrem por antecipação a amargura da desilusão, o pânico de falhar, da rejeição. Anseiam o consolo infeliz do porto seguro.
Tiram-se as mãos dos bolsos, sem medo. Porque é mais forte que elas o desejo de agarrar. Assim se soltam as palavras, presas na garganta, por instinto.
Beija-se ardentemente. Com os lábios, com as mãos, com as palavras. Sem pudor. Beija-se sofregamente com o coração.
Tudo começa novamente. As vezes que for preciso.